Artigo: Serviços funerários e transporte fúnebre intermunicipal: a quem compete a regulação?
Há, atualmente, perante o Poder Judiciário Paranaense, forte discussão a respeito do denominado “transporte fúnebre intermunicipal”. O Supremo Tribunal Federal (STF), quando do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 1221-5, da relatoria do Ministro Carlos Velloso, já fixou o entendimento que os serviços funerários são serviços públicos de interesse local, cuja a competência regulatória é privativa do Município (art. 30, inc. V, CF). Nesse julgamento, o serviço público funerário foi definido a partir de quatro atividades: (i) confecção de caixões; (ii) organização de velório; (iii) transporte de cadáveres e, por fim, (iv) administração de cemitérios.
Daí, pergunta-se: a competência da regulação do transporte de cadáveres ocorre tão somente nos limites territoriais ou pode atingir outros Municípios?
Um exemplo concreto permite melhor analisar a questão. Em Curitiba, o serviço funerário é regulamentado pela Lei Municipal de n° 10.595/02. Em Campo Largo, o marco legal é a Lei Municipal n° 2295/2012. O Município de Campo Largo integra a Região Metropolitana de Curitiba, sendo que nele está localizado um dos maiores hospitais públicos do Estado do Paraná. Ambos os Municípios, Curitiba e Campo Largo, adotam a regra de escalonamento (artigo 4° da Lei 10.595/02 e artigo 13 da Lei de n° 2295/2012) para a distribuição dos serviços. As empresas funerárias somente podem prestar seus serviços após serem contratadas mediante processo licitatório, o qual avalia não apenas condições econômicas, mas, também, técnicas.
A adoção do sistema de rodízio ou escalonamento presta-se a evitar o constrangimento de familiares da pessoa falecida na captação de clientes. Ao mesmo tempo, permite um maior controle sobe qualidade do serviço prestado e assegura uma remuneração isonômica das permissionárias, que são responsáveis não só pelos velórios e sepultamentos particulares, mas também pelo atendimento gratuito dos óbitos de pessoas carentes e/ou indigentes. Além da questão referente à qualidade dos serviços, os Municípios igualmente preocupam-se com as receitas públicas que advém dessa atividade. Não apenas em razão do recolhimento do ISS, mas também em razão do fato de que os contratos administrativos firmados com as funerárias preveem que estas devem repassar parcela de sua remuneração diretamente ao Poder Concedente, sendo tal pagamento usualmente denominado de “outorgas”.
Porém, existem exceções a este sistema de rodízio, sendo que usualmente abrangem justamente casos de “transporte fúnebre intermunicipal”. Por exemplo, tanto em Campo Largo, como em Curitiba, o escalonamento não precisa ser observado quando o velório e o sepultamento ocorrerem em Município distinto. Contudo, a funerária a ser contratada deverá ser necessariamente do local de realização do velório e sepultamento (artigo 14 da Lei n° 2.295/2012 e artigo 13 do Decreto de n° 11/2012 e artigo 5° da Lei Municipal de n° 2.295/2012).
Ao criar regras de transporte de cadáveres entre os Municípios, houve a extrapolação da competência por parte de Curitiba e Campo Largo? Por que há referido cuidado por parte dos entes da Federação?
Nota-se que “transporte fúnebre intermunicipal” é uma fase do serviço público funerário, cuja competência é Municipal, o que afasta competência do Estado-membro. Afasta, inclusive, conceitos relacionados à “função pública do interesse comum”, que compõe elemento essencial para a formação da região metropolitana. Na verdade, o “transporte fúnebre intermunicipal” deveria ser tratado a partir do conceito de “função pública de interesse intermunicipal” (ALVES, Allaor Café, 1998, p. 38).
Monica Justen (JUSTEN, Monica, 2000, p.87) esclarece que o conceito de função pública se relaciona à: “atividade jurídica autorizativa, inerente à soberania do Estado, tais com a polícia e a diplomacia, destinada a satisfazer os interesses da coletividade no seu conjunto. (…) Por serviço público, compreende-se uma atividade social, imputável, direta ou indiretamente, ao Estado ou a um ente público, caracterizada pela prestação técnica ou material em favor dos cidadãos (segundo alguns, singularmente considerados)”. A noção de função pública engloba, portanto, várias formas de atuação estatal e dentre delas está o poder de polícia e o planejamento.
O “transporte fúnebre intermunicipal” corresponde a uma “função pública de interesse intermunicipal”. Isso porque deve ser tratado a partir do relacionamento espontâneo entre Municípios vizinhos que possuem interesse na resolução de um problema comum e não, necessariamente, urbano-regional. No caso concreto demonstrado, a partir das Legislações de Curitiba e Campo Largo, a formação de convênios de cooperação demonstra-se o caminho mais adequado, nos termos do artigo 241 da Constituição Federal, para a resolução de eventuais conflitos, eis que tais conflitos poderiam ser resolvidos por mecanismos de gestão de informação (o que não geraria nem custos ou custos muito baixos).
O silêncio dos Poderes Executivo e Legislativo e a concessão de decisões judiciais que, por um lado, afastam os dispositivos legais Municipais e, por outro, permitem que funerárias não permissionárias passem a prestar o transporte de cadáveres, compõe um conjunto de condutas que não prejudicam apenas a equação econômica financeira dos contratos administrativos das permissionárias, mas, também, reduzem receitas dos Municípios e permitem a formação de um mercado paralelo, sem qualquer regulação ou controle por qualquer ente da Federação.
Para alguns juízes paranaenses, o transporte de cadáver entre Municípios corresponde a um novo serviço público, cuja titularidade é do Estado-Membro, pois decorreria de competência residual. Tal situação prejudicará em muito os cidadãos, os quais, em um contexto delicado como o atual (pandêmico), não terão certeza a respeito do cumprimento das exigências sanitárias impostas pelos órgãos competentes no tratamento dos cadáveres (mesmo porque o próprio transporte intermunicipal, ou traslado, é vedado em casos de doenças infecto-contagiosas – artigo 10 da Resolução RDC n° 33 de 8 de julho de 2011). Sem contar, é claro, com o risco de serem obrigados a pagar quantias abusivas pelo serviço.
Não há dúvida de que o tema proposto é um desafio, ainda mais em contextos como atual. Mas é necessário coordenar os Municípios para que, de forma integrada e coordenada, possam resolver problemas de interesse comum.