Artigo: O debate Dworkin-Fish: uma conversa entre o jurista filósofo e o crítico literário
“Via de regra, sabe-o o senhor, é a superstição fecundo ponto de partida para a pesquisa.” Assim é contada a experiência que soma “raciocínios e intuições” do narrador do conto de J. Guimarães Rosa, “O Espelho”, publicado em 1962, no livro “Primeiras Estórias”. A intuição, em certa medida, indicou para a pesquisa jurídica que algo está situado na relação Direito-Literatura; é, especialmente, na linguagem que o Direito e a Literatura compartilham o seu terreno comum.
O “Movimento Direito e Literatura” tem o mérito de, por volta da década de 1970, nos Estados Unidos, sistematizar os estudos da área. Apesar de haver, antes e em variados lugares, conexões entre os dois campos.
É dentro dessa perspectiva que quer se apresentar, aqui, o debate entre Ronald Dworkin, o jusfilósofo, e Stanley Fish, o crítico literário.
O artigo de Dwokin “Direito como Interpretação” (Law as Interpretation), publicado pelo Critical Inquiry, periódico de artes e humanidades da University of Chicago Press, em 1982 (depois pela Texas Law Review, n. 60) foi o ponto de partida para a conversa entre intelectuais. A publicação viria a compor a parte dois do livro “Uma Questão de Princípio” (1985), com o título do ponto 3, que corresponde ao conteúdo do referido texto, alterado para “De que maneira o Direito se assemelha à literatura”.
Antes de mais, vale lembrar que, para o autor, o direito é uma prática social; portanto, quer afastar a ideia do direito enquanto modelo de regras, o que o faz substituir a analogia do jogo de xadrez (utilizada pelos positivistas – combate, especialmente, o positivismo de Hart), para a de cortesia. No texto enfrenta, pois, a questão dicotômica de identificar se as proposições jurídicas descrevem ou prescrevem o direito. Apresenta a sua terceira via, ou a que acredita ser a melhor alternativa (better alternative): são proposições interpretativas; isto é, “são interpretativas da história jurídica, que combina elementos de descrição e prescrição, mas é diferente de ambos”. Dworkin aposta no estudo da interpretação como uma atividade geral do conhecimento; na ideia de explorar o termo interpretação em outras áreas e contextos. Assim, afirma que “muito mais teorias de interpretação têm sido defendidas na literatura”, daí a importância de juristas estudarem a disciplina.
Encontramos, aqui, a famosa metáfora do romance em cadeia (chain novel) transportada para o direito (chain of law), em que a prática literária é comparada à jurídica e os juízes são vistos como autores de uma empreitada coletiva; ou seja, têm o dever de levar a cabo “um romance único e unificado, ao contrário de, por exemplo, uma série de contos independentes”. A figura do juiz-escritor tem a responsabilidade de não se ater somente à história que o antecede, sob pena de abraçar o convencionalismo; tampouco deve olhar somente para o futuro, com risco de incorporar o pragmatismo. O juiz-escritor é melhor pensado dentro da lógica da cadeia do direito na concepção de direito como integridade que o autor adota.
Dworkin indica seu propósito de tomar a interpretação literária como um “modelo” da análise jurídica. O que quer dizer que ele aproxima a criação e a crítica, ou seja, cada juiz-escritor tem a responsabilidade de interpretar e criar.
Stanley Fish escreve, então, algumas objeções às ideias apresentadas por Dworkin em Working on the Chain Gang: Interpretation in the Law and in Literary Criticism, também publicado inicialmente na Critical Inquiry, em 1982. O texto aparece, também, depois, no livro Doing What Comes Naturally, em 1989. Antes de apresentar as suas críticas, logo afirma: “Dworkin está certo”; afinal, seu dialogante acertou ao relacionar seu argumento sobre prática legal com o argumento sobre a prática da crítica literária. Segundo Fish, nas duas disciplinas, a questão que se coloca é “qual é a fonte da autoridade interpretativa?”; mais ainda, as respostas vêm justamente a determinar um campo dividido entre “aqueles que acreditam que a interpretação está fundamentada na objetividade e naqueles que acreditam que os intérpretes são (…) livres. ”.
Fish apresenta, pois, suas objeções, as quais estão relacionadas diretamente com a metáfora do romance em cadeia e podem ser identificadas como i) a distinção entre o primeiro romancista e os romancistas posteriores; e ii) Dworkin ter incorporado as críticas que faz à dicotomia entre prescrever e descrever. Fish explica que o grau de liberdade e de restrições não depende da posição que o escritor ocupa na cadeia; afinal, até mesmo o primeiro autor está limitado pelas noções de “começar um romance” que pressupõe “um contexto e um conjunto de práticas”. Afirma com isso que cada romancista é igualmente constringido e livre na empreitada.
A troca de textos seguiu adiante. Não é a intenção, aqui, investigar inteiramente o debate, mas, antes, apresentá-lo e tecer comentários aos primeiros textos que iniciaram a troca de pensamentos. As publicações posteriores somam: a resposta de Dwokin, My Reply to Stanley Fish (and Walter Benn Michaels): Please Don’t Talk about Objectivity Any More (1983); Fish segue com Wrong Again (1983), também, com Still Wrong After these years (1987).
A teoria de Dworkin ainda movimenta, principalmente quando disputada por muitos de seus críticos; também, não hesita em se colocar em um terreno que se localiza por cruzar saberes, desde o direito, a filosofia, a política e a literatura.